segunda-feira, maio 20, 2019





                Marespelho

    Carmen Lúcia Fossari
Se me lembro bem foi o Joca Grandäo o homem que mais trabalhou para a criação da nossa cooperativa, ele e o seu Paulo Wright, que vinha lá do Paraná. Dizem que lá tinha ajudado o pessoal da terra para que  formassem  cooperativas agrícolas. Homem bom, dá saudades só de lembrar dele.    
Também ele queria uma escola e o posto de saúde ora se não! O desejo dele tinha parecência com o meu e, é claro, era o desejo em irmandade de vontade, com o  de todo pessoal da Vila e igual por parte das colônias de pescadores de todo esse litoral de Santa Catarina.  Luiza não parava de  repetir: “homem de Deus, dividir tudo o que deu na rede de quinhão igual para  todos que pescaram e termos o que é da gente, assim  de  ter e de ser da gente mesmo, umas redes de pesca para o caceio das corvinas e não ter que pedir emprestado nem barco, nem rede isso sim  há de ser o nosso futuro bom”.
        Eita cabeça que já não socorre - pudera faz prá mais de 20 anos e parece que foi ontem...mas a imagem dele eu vejo entre a fumaça do fogaréu , lá estava ele o seu Joel ajudando a milícia tacar fogo nas nossas redes e no freezer da cooperativa. Ano de 1964!
        Me lembro dele com duas latas de querosene nas costas, a fazer de conta que carregava era a água da bica d’àgua umas horas antes de começar o incêndio.
      Agora Jordelino escuta barulhos. A aparelhagem ali dentro só dá para ver espiando  e nas pontas dos pés sobre  aquele beiral. “Máquinas dessas só mesmo prá doutor da cidade”.
    Olha as horas no relógio de pulso e vê uma hora e ainda mais trinta minutos da noite. Da noite não, da madrugada! Da madrugada não, do dia que há de nascer! Dia, noite, noitedia.
     Jordelino coça a cabeça. Manhã., noite ou madrugada e já passaram outras as voltas dos  ponteiros a girar. E ele pensa que nesse momento Nossa Senhora dos Navegantes já foi dormir e só ficou acordado o Menino Jesus, que há de protege-lo, enquanto ele cuida de tudo isso, nessa noite que não acaba mais, ali do lado de fora das salas, ele vigiando .
     Ensimesmou outra vez : E desde quando Pombeiro ia ficar do lado da gente?
      Seu Joel queria mais é ver tudo virar cinzas, o fogo ardendo, vermelho pulando em línguas escaldantes e a fumaça tudo acinzentando era  para parecer ter sido  um acidente. Quem nasce prá ser pombeiro nunca haveria de ser bombeiro, e ainda tinha o pessoal da Vila, todos juntos de não querer à milícia, e ela ali dia a dia cercando. Os avisos , avisos não ameaças ,até em alto falantes aquela gente gritava :cooperativa é coisa de comunista, do diabo, de gente sem coração!
     Sem coração foram eles, colocar fogo na escola, nos livros, escorraçarem os professores; fogo na sede da FECOPESCA ! Uma união das colônias dos pescadores por todo litoral .Ela era o coro dos pescadores, que o vento sul sibilava pelas costas do mar, do mar das terras de Santa Catarina. Nossa cooperativa de pesca... repetiu um pouco sonolento. Lacrimejou. Um dia ele teve um sonho, todos teriam um futuro de mar e vida tranquila para as suas  famílias.
      Jordelino conteve um soluço e balbuciou o sonho queimado :Federação das Cooperativas de Pesca Catarinense.
     Ela não seria luxenta e as redes e os barcos de pesca de seu Joel, o pombeiro, iriam acabar emaranhados . Paranhos.Que tudo virasse  paranhos de tanto não serem mais usadas. Parados, sem serem mais  “alugados”  como poste sem serventia, quando a luz está queimada.  
    Um dia o Joca Grandão ficou  de  brabeza , mas daquela bem braba mesmo. Disse pro seu Joel: o senhor fica aqui no seco e a gente vai mar adentro, arrisca a pele nos  perigos do mar, e quando voltamos com o barco cheio de peixes, nós que vamos em cinco homens pra além da arrebentação das ondas dividimos em duas partes a pesca, metade pro senhor e a outra metade dividimos ainda em  seis, porque o senhor ainda quer uma parte da nossa metade. Dai o Joel pombeiro respondeu que quem não estivesse satisfeito que fosse pescar com vara de pescar feita de bambu lá no molhe da praia. Só mesmo o  seu Paulo  para  ajudar a gente ver que aquilo não era o certo, tudo iria mudar .
     Jordelino lembrou da Dona Nena falando que  mar é de todas as estrelas quando a noite desce, é  também de todas as ondas, as calmas e as violentas  então  peixes do mar também seriam para todos!
   Agora  pensou estar  tomado de febre, porque seu pensamento agia como um pião,são três horas, da manhã, da noite ou da madrugada.
        O som do apito agudo, vindo de uma quadra depois, fez com que o funcionário, com número de matrícula 231(carteira assinada?) corresse a fim de acionar o botão. Um botão escarlate, esse botão. Na verdade o botão nem é botão, é sim uma sineta eletrônica, cuja única tarefa é a de comprovar ao chefe do setor, que ele permanece em vigília, de olhos ainda bem abertos.
         No cômoro eu ficava de vigília. Fora! FOORRAAAAAAA!
       FOORRAAAAAAA! Corre a Maria, depois o Zequinha, depois a Candinha, depois a Maralda, meio andando e rodando as saias longas, pretas de viuvez, a Oralda quem menos corria, a ficar parada com a língua acionada no diz que me disse e nem disse. Mas dizia sim da vizinha que virou borboleta na lua cheia e foi vista depois nua dançando sobre as pedras e não encerrava os ditos, da outra vizinha o dizer era que entrava pelo  buraco da fechadura nas casas, para  enfeitiçar e que vizinha nenhuma prestava, ainda mais agora, que frequentava a nova igreja da praia com uma bíblia  nas mãos, mesmo que ainda não juntasse bem letrinha com letrinha ao tentar ler as  finas páginas do livro que logo voltava a ser fechado. Na correria depois de escutarem o FOORRAAAAAAA o Toninho da Odenilda , com suas perninhas em arco, e por isso querendo ser, quando crescer Garrincha, e depois o Zé d`Alhu, sempre ébrio a gravatear com garapuvú , n`agua berrando no coro da vila que o cardume das tainhas está bem perto: FOORRAAAAAAA !
      As vozes forte prosseguiam enquanto eu acenava com meu velho paletó para a Vila já então colorida de prata em prata peixe de alumínio as bacias correndo nas mãos das gentes em alegria. Movimentos ágeis e rápidos de mãos, redes, água, n`água barrenta, barreada, n’água esperança, prateada de parir peixes, da tainha nossa de quando tinha.
         Da parede , do lado direito o grande relógio sonoriza os Tic-Tac. Nessas quatro horas tique-taquear ouvindo pode ensurdecer qualquer um.
        O funcionário 231, diz para si, com convicção, que é urgente ir no velho Gabriel, lá da freguesia da Lapa, fazer uma benzedura porque lhe dói toda a coluna. Sim o único ser de calças compridas e barba no rosto que faz benzedura em toda ilha é o seu Gabriel, que no demais só se há de conhecimento as mulheres. Mulheres , algumas poucas,  podem benzer  e outras podem ser bruxas. Os dois feitos em uma mesma  mulher de ser  ser benzedeira e  também bruxa  nunca ele teve conhecimento, mas poderia existir , tudo pode existir no mundo pensou.
     As benzedeiras abençoam  e as vezes usam um unguento; as mulheres bruxas sem o unguento não criam asas; que complicado a natureza que as mulheres possuem falou à si no momento em que só desejava era ser benzido pelo Gabriel da Lapa. Se encontrasse um dia mulher bruxa que também benzesse, dai ia querer ser benzido, bendito . Seria uma reza braba e nem o Menino Jesus seria invocado! Fechou os olhos e acalmou a febre, o sorriso de Luiza sempre lhe trazia ternura!
  O rosto ainda um pouco suado, Jordelino sabe que longe do mar, fazendo o serviço de vigia, trancafiado numa sala é  uma presa fácil dos pensamentos que vão atravessando a mente, talvez até embaralhando.
    O velho Gabriel  pode benzer os ouvidos e também os olhos, mas são os pés encharcados no sapato bem gasto que fazem Jordelino sentir a chuva fininha batendo no telhado, e entrando na portaria.
       Uma torneira aberta e horas depois  percebe que o carpete da sala do Doutor  inundou. Tanta àgua por uma torneira aberta na  cidade, longe da praia, água tanta e não é do mar!
Nervoso com o molhe de chaves nas mãos , só percebe que entrou na sala, fechou a torneira, chaveou a porta do consultório, ao guardar mecanicamente o molhe de chaves numa gaveta. Na portaria.
      Olha o Camaraaaaãããooo! O vento suli, corria a voz para bem longe. Ainda menino e já ia para a cidade com o pai. Iam “de  a pé”, caminhavam ainda  de noite e chegavam na cidade tudo bem claro. Paravam no Itacorubi, tomavam café na casa da  comadre da mãe e do pai, e seguiam à cidade.
     Dizia o pai: “Jordelino meu filho não estás cansado? Queres tomar um pouco de caldo de cana? Eu sei , filho meu. Tu ficas de escuta e é só saber que venho para a cidade com balaio cheio de camarão que te enveredas logo, a querer ajudar o pai. Mas de querência mesmo é vir nesse mercado tão grande e” prá modu “de tomar caldo de cana! Queres outro?!
       E o pai não cansava, ele tinha saúde para caminhar desde a praia à cidade e ainda adentrar no mar adentro uma noite toda dentro de uma bateira a pescar.
    Ele só não gostava de passar em frente das peixarias, logo cruzava a rua.
    “Dono de Peixaria, é que nem Pombeiro”, dizia ele, ganham lucro com os braços da gente. O pai ria muito quando contava das Donas Marias, da cidade.
                      - O Vento Suli tá brabo né Dona Maria?
                     - O meu nome não é Maria, é Irene !
                      - Certo Dona Irene, vai levar hoje um quilo e meio de camarão, fresquinho?
                      - Moço, havia gritado uma voz bem miúda, - o nome dela também é Maria também     
                     é Irene Maria.
                      - Então eu acertei, vai levar dois quilos freguesa?!
                             O pai gostava de contar histórias da cidade, dizia que lá tudo era   complicado . Quatro e tantos minutos, muitos segundos e a mesma monotonia. Tinha coisa melhor do que essa lágrima salgada que nem o mar a descer pelo rosto nessa madrugada de ser vigia. Era quando chegava a sexta feira que a noite era mais longa, porque no fim de semana tudo antes era mar. Mar, tanto do mar para ser feliz. A família se reunia e ele levava uma tanhota que sabia pescar tão bem.  
      Como foi feliz quando ia todo dia, toda noite mar adentro. Agora tinha que  ficar no seco, trabalhar na cidade que nem passarinho preso em gaiola, os compadres sempre me culpando, daquele incêndio que não consegui defender mas como podia eu deter  aquela fúria e ódio? Quando as pessoas se transformam em bicho , ninguém pode com elas.
   Dona Luizinha, mulher do Jordelino,rendeira que é faz renda de bilro enquanto ele estende no quintal da casa uma  tarrafa que conserta  com  fio de nylon. É  com os trocados desses bicos que podem pagar estudo para o filho. Luizinha é uma mulher de muita paixão, por tudo e pelo Jordelino então, nem se fala! Fizeram corrida de ganso  ela tinha 16 anos e ele 18.
     Os dois tem muita bem querência  em toda Vila e na freguesia vizinha também. A almofada de bilro como o tique taque da noite,  traz o som de madeiras que vai trançando pontos.
       - Quer vender essa renda? O som de palmas interrompe seu pensamento, responde qual, essa de Boca de Sino? A cumadre, há de querer comprar?Então pode levar Nena, só me pagas o preço da linha. A linha tá muito cara, ah tem essa daqui , amarelinha, tá bem vistosa.
    A viúva do Joca Grandão, Dona Nena, é muito estimada por todos que moram ali,  vizinhos do mar. Ela foi uma grande mulher, pioneira da vila em todas as mudanças e feitos. A primeira pessoa que quis escutar o Deputado Paulo Stuart Wright sobre os benefícios de uma cooperativa de pesca. Reuniu em sua casa os pescadores mais velhos para a primeira reunião com o Seu Paulo. Ia para cidade e voltava, com cadernos que estudava, de como em outros países as cooperativas melhoraram a vida dos pescadores, se o mar é tão rico, porque nós precisamos viver pobres? Escola para os nossos filhos,  termos  lugar para armazenar  pesca, e tanta coisa que estudou com  os cadernos e as falas de Seu Paulo e da dona Eliane que morava na rua Urbano Salles, e ficou presa em casa, com soldado plantado na frente da sua casa, porque diziam que era comunista, uma mulher tão doce, com três filhos . E quando o ano de 1964 chegou, e os fardados da cidade vieram colocar fogo na FECOPESCA, e prender os pescadores mais antigos, a Dona Nena foi a primeira  a  lutar para apagar o incêndio  no galpão pronto. Logo que o Seu Paulo desapareceu, ela  tentou socorrer  as cooperativas  pelo litoral catarinense...Ela e os camaradas.
    Depois de tudo destruído, e viúva do Joca Grandão, que morreu torturado nunca mais esqueceu do ano de 64  mas jurou por sua alma, que não deixaria de ser feliz e de lutar para que as pessoas soubessem que sim é possível  viver melhor, quando um grupo unido , acredita num sonho.
    Anos depois Dona Nena  abriu uma vendinha , na beira da praia, e só não venda peixes. Deu de mudar os costumes, parece que o mar  lhe ficou mais distante, porque já não olhava mais para ele .Para sustentar a família aprendeu  a comerciar, coisas miúdas, mas que careciam na Vila.
    Criou uma caderneta/promissória de honra, com  duas capas, a de cor branca: pagamento quando o mar estiver para peixe e cor azul do mar, pagamento quando os pescadores embarcados para o Rio Grande ou Santos retornavam às suas casas.
    Na venda/armazém da Dona Nena , havia uma exceção , na época da  tainha, ela comprava para  mais de  10 balaios bem cheios da famosa habitante do mar, quase um cardume dizia em exagero. E então  a Nena, da cooperativa, renascia preparava as tainhas e um pirão caprichado, se colocava a fritar e também a assar , com a ajuda de todas as vizinhas faziam ainda a tainha de preferência de todos: a  escalada e no domingo ao meio dia toda a vila ia no quintal da venda, comer e festejar a safra da tainha.
    Os pés rodopiavam na ratoeira de vozes tão femininas mas acompanhadas pela rabeca e o violino do Pão por Deus do seu Maneca e do Osório. Os pontos da renda de bilro, feito ourivesaria adornavam saias de chitão de cores escaldantes verde, vermelho, amarelo , saltitantes cores e flores nas saias e nas camisas dos  homens , o chapéu de domingo de palha ainda inteira e vincada. Uma roupa a parte era  o terno branco do  Sebastião ,o forasteiro da cidade , que mora sozinho na casa da esquina e pouco falava, as vezes vinha uma mulher da cidade de carro que parava na frente e ficava o dia inteiro e a noite também, saia e ia embora no dia seguinte quando amanhecia, antes mesmo do galo do quintal da Benedita se colocar a gritar mais forte que o som da maré alta estourando onda na praia.
     Dizem que foi mulher  do forasteiro, coisa assim de papel passado  como fazem na cidade, não coisa de corrida de ganso como é costume aqui na praia , comentavam. Corrida de ganso era coisa boa, o rapagi avisava a família que ia trazer a namorada. A namorada ia de a pé, caminhando  com o namorado para a casa da sogra e do sogro. O quarto dos pais do namorado era emprestado ao então noivo e sua noiva, ali passavam sua primeira noite de amor, ao menos oficialmente, e, na manhã seguinte estava  sacralizado para todos da comunidade que estavam casados...assim sem testemunhas na Igreja ou cartório...mas repletos de testemunhos  senão oculares certamente auditivos !
     Da vida dele , o forasteiro se diz que ele e ela, a  mulher da cidade, não conseguem ficar muito tempo um longe do outro e muito menos conseguiriam os dois morarem  juntos embaixo de um mesmo teto por mais de três anoiteceres. O único que Sebastião  nunca separou de si , foi o seu impecável  terno branco e o óculos de espelho, que espelha tanto os raios do sol quanto o brilho da lua.
     Não cobrava nada pelo domingo de fartura a Dona Nena, nem mesmo a bebida que servia com generosidade, bem diferente do dia a dia a cobrar as dívidas das cadernetas, colocando tudo com preço mais caro, e ainda mais distante da Dona Nena da Cooperativa, que falava que ali deveria ser um por todos e todos por um, o lucro, a educação, o trabalho... tudo socializado, tudo como um ato de amor  para com as pessoas.
 O ponteiro, passou das sete e trinta , e o Jordelino no ponto de ônibus, só espera chegar em casa e pegar a tarrafa. A noite foi longa, a noite sempre é longa... vêm as lembranças, e essa noite foi tão longe...os olhos marejaram enquanto a poça d’agua espirra em seus pés com a parada do ônibus, que vai para a praia. Entra cansado, sonambulo no ônibus que está quase vazio, passa pela catraca e senta bem na frente, encosta o rosto na janela.. queria mesmo é ter passado a noite no molhado, trabalhando mar adentro... como fizera seu pai e seu avô, que o mar, para quem respeita sempre há boa aventurança.
Mirou-se pela memória nas noites do mar em calmaria e também das noites de tempestade, do medo de não voltar para terra firme, com o mar querendo engolir. Saltou do ônibus era  em parte bom trabalhar de vigia na cidade, tinha aquele dinheiro certo todo fim de mês, mas não podia ganhar mais , mas quando ia pro mar tarrafear  em horas de folga sim tinha um dinheirinho extra!. 
 Era mais forte o lado ruim, que a vida  abraçado na praia com os amigos e com a família era quando se sentia inteiro, como se ele fizesse parte do morro repleto de pedras e árvores, como se ele fosse também um punhado de areia da praia, como se ele pudesse ser água, água salgada, água do mar, aguenta com firmeza a tarrafa que o lanço da tainha foi muito bom.  Fooooraaaaaaaa ! Olha o camarrããããooo ! São os sons que martelam  nas noites de vigília, não do mar  que é uma parte de si, mas da vigília do prédio da cidade, onde o espaço que ele têm é uma cadeira  e as vezes uma mesa para fazer o lanche na minúscula portaria, ou seria uma gaiola de cimento e ele um pássaro sem asas?
    Dona Nena carregava uma sacola  com roupas para doação, tinha muita  criança na praia com  os pais embarcados pro Rio Grande, isso ela ainda tinha de bom coração, podia salgar nos preços
da sua venda  mas acabava sempre fazendo doações que muito em boa hora chegavam nas casas dos pescadores.
    Ao virar a ruazinha estreita, seu coração, já nem tão jovem, acelerou, sentiu-se um jovenzinho a escutar: Se tuas mãos teceram redes /Elas saberão/ Das minhas mãos/Carinhos que te entrelaçam/Nos laços dos fios/Do amor que tenho à ti.
     Jordelino sentiu mais uma vez um frio na espinha que a Luiza com sua voz sempre tomava conta dele, como se ele passasse a ser uma parte inteira dela,  e ela uma outra parte inteira dele. Não tinha palavras, mas ainda tinha lágrimas e o sapato molhado e a dor nas costas e o tique taque  tiquetaqueando da noite toda, ficou confuso, parou e respirou fundo. Seguiu. Dona Nena ao seu lado escutou ele confessar, que tinha dias que ele sentia a Luiza como uma mulher menina, que os anos a deixavam ficar assim como ele a conheceu correndo com o balaio na praia para ir pegar as tainhas cor de prata, no mar prateado de tainhas...e agora seus cabelos estavam cor de prata.
     Na semana seguinte dia de pagamento na cidade, ia pagar a caderneta da venda da  Dona Nena e iria pro mar adentro, matar a saudades do mar, que o mar nunca sai da gente.  Mas está tudo muito difícil os homens que trabalham pro seu Joel, desde aquele tempo do incêndio, cercaram o mar. O mar é para ser livre, como passarinho no ar a voar...mar é para correr e estourar suas ondas na praia e voltar a ser mar. Agora os barcos grandes passam antes a  capturar tudo e quando os barcos  pequenos  adentram o mar o cardume  mais graúdo já foi captado.
                        O meu pai que está no céu, ao lado da Nossa Senhora dos Navegantes  que me dê seu perdão por eu ter ido trabalhar na cidade por salário. Meus filhos estudam, decerto vão conseguir um dia terem seu próprio barco, um bom motor... escrito no lado com letra azul  bem grande o nome  Gaivota  e se um dia tiverem um segundo barco, que o nome seja Luiza, mas essa palavra tem que ser escrita na cor vermelha. Sorriu. 
                       Percebeu que acabara mais uma noite de trabalho na cidade, não houve nenhum problema, e os minutos custaram rodar; deu tempo de marear  o pensamento em tantas coisas...
                        O filho mais velho de Jordelino e Luiza, com 12 anos de idade ganhou da professora da escola da praia um elogio, por te escrito a melhor redação da sala de aula:
                   “ O mar e o meu pai são como um Espelho , só que agora o espelho está quebrado. O mar está cercado, poluído. O meu pai é o seu Jordelino, agora trabalha de vigia a noite na cidade  e ele está com o coração despedaçado porque não pode mais  viver do mar. O mar que ele é “ não pode mais ser”.
                        Marespelho  Jordelino, quem sabe teu filho?!








      



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