quarta-feira, agosto 23, 2017

A DEMOCRACIA IMPEDIDA POR REMY FONTANA





         Trago ao Blog um instigante texto  do sociólogo  Remy Fontana, Professor da UFSC 
         partindo  da  obra :
             
A democracia impedida. O Brasil no Século XXI ( Wanderley Guilherme dos Santos, WGS)

Encarando adversidade. Construindo resistência

Texto exposto  no Núcleo de Estudos em Serviço Social e Organização Popular
CURSO DE FORMAÇÃO PERMANENTE: AÇOES COLETIVAS, DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E DIREITOS SOCIAIS

 Universidade Federal de Santa Catarina

 
                           



12 Pontos de partida:



1.      Entender, criticar e transformar as condições que tornam as pessoas exploradas, dominadas e alienadas




2.      Distinguir o momento e os instrumentos próprios da reflexão e os da ação; da produção da análise e da intervenção política;





3.      A conjuntura corresponde ao momento atual, que é o campo específico da prática política; trata-se de uma situação de luta política de classes, embora estas não intervenham aí como classes, mas como facções mais ou menos organizadas, que são os reais atores do conflito político;





4.      A ideia de conjuntura só é pensável a partir da ideia de estrutura e mediante a ideia de contradição inerente à estrutura;



5.      Análises de conjuntura se fazem por razões e motivações distintas:


- Algumas para mapear situações e compreender sua dinâmica.  Este é o caso que nos reúne aqui e agora, num ambiente de estudo, reflexão e diálogo entre academia e movimento social;


- Outras, para intervir diretamente num conflito aberto, em curso. Neste caso, é a organização ou movimento social que elabora sua análise enquanto mergulha na ação política;





6.      Estamos num momento em que as contradições sociais e conflitos políticos estão ainda se configurando, se explicitando e se agudizando cujos elementos, protagonistas, eixos e dinâmicas estão ainda adquirindo suas formas, rearticulando seus interesses, testando suas forças e ensaiando suas intervenções e protagonismos





7.      Longo período pela frente para se equacionar e se superar esta conjuntura, que se apresenta com uma forte inflexão à direita. Isto não significa que a direita vai impor por completo sua agenda, sua pauta, pois haverá e está havendo um contraponto de forças, uma resistência política, cujo resultado encontra-se, ao menos em parte,  em aberto;





8.      Se a esquerda se encontra fragmentada e desunida, a direita também não se apresenta sem fissuras, como um bloco monolítico; A direita tem a força e o controle dos espaços e aparelhos institucionais, seu “projeto” é estar à deriva do neoliberalismo globalizado, e que está arruinando o país.


A esquerda (parte da esquerda) desalojada do governo, com relativamente baixa capacidade aglutinadora e mobilizadora para resistir ao golpe; também está sem projeto de país;





9.      Em conjunturas críticas há maior explicitação dos interesses de classe; daí decorre uma pedagogia política, uma melhor possibilidade de aprendizagem política: realinham-se as forças sociais, alteraram-se as condições de luta, abrem-se novas frentes de combate, cujos resultados e consequências estão, em parte,  indeterminados;





10.  A maior clareza quanto aos interesses em confronto e os conflitos que enseja favorece a dissipação das ilusões sociais e políticas. A dimensão nua e crua das contradições sociais que daí emerge vai determinar o ritmo, a intensidade e a configuração do processo político;


11.   A compreensão da política e de seu exercício sofre brusca mudança: de uma concepção da política como arte em busca de consenso/persuasão, para uma concepção da política como arte de guerra (ação tática e estratégica, acúmulo de força social, lutas de classe, conquista e manutenção do poder).  O conflito aberto pende, pelos recursos e meios disponíveis, para o lado do mais forte (produtores/proprietários), mas não sempre nem inevitavelmente, como a história das transformações sociais mais ou menos revolucionárias o demonstra;


12     Estamos vivendo uma época liberal exacerbada, em que como nunca antes se exerceu uma dominação tão crua, e nua de propósitos conciliadores com os segmentos dominados (WGS);


 Neste sentido, 2016 não foi um golpe, foi uma guerra. E o Brasil perdeu; poderíamos dizer hoje a propósito do Brasil, algo parecido com o que Albert Camus disse em 1951 sobre as atrocidades pelas quais a Europa tinha passado:  A desgraça é hoje a nossa pátria comum”.



                                              Sociólogo Remy Fontna





Conjuntura brasileira atual: de crise





 Pano de fundo: interrupção golpista do ciclo dos governos do PT, que reorientou as políticas oficiais para além das tradicionais preferências das elites, em direção ao inédito atendimento das necessidades primárias da população de baixa e baixíssima renda.


Vivemos uma conjuntura provocada pelo turbilhão de acontecimentos que se sucedem em uma velocidade espantosa, que nos traz perplexidade, desafia a capacidade de análise e as previsões do que está por vir, dada a aceleração das transformações em curso, embora a direção conservadora que a comanda seja hoje de uma evidência cruel quanto aos impactos antissociais para a maioria da população.





Caracterização e periodização. Superposição de duas crises


a)      Estrutural: relativa à permanente tensão entre dois fluxos, o da acumulação de capital e o da participação ampliada nas democracias representativas de massa; a crise, neste nível, está exacerbada a partir do estouro financeiro de 2007/2008 e que chega com força no país em 2013/2014, alterando brusca e agudamente a competição distributiva de renda.

No Brasil isto se traduz num projeto que visa uma profunda reestruturação do Estado, mas que o lança em crise de dominação, com conflitos interburgueses/frações do capital, e elevação das taxas de superexploração da classe trabalhadora.  A regressão social que implica, acabará por levar a médio e longo prazo a confrontos sociais e conflitos políticos intensos, crescentes e de consequências imprevisíveis.




b)     Conjuntural - duas etapas:





1)      de 2003 com a posse de Lula até as manifestações massivas de rua de 2013.

Ponto de inflexão: Ação Penal 470 (Mensalão) 2005, início de ofensiva conservadora para “interromper por via não eleitoral a liderança do PT, com intervenção complementar direta do Judiciário (WGS)”. Esta AP 470 “sancionou interpretações de conveniência e condenações seletivas. Talvez o julgamento prepotentemente político mais bem documentado na história da República (WGS)”.


AP 470: um julgamento de exceção, a espinha dorsal pela qual percorreu as contrafações jurídicas que desaguam no golpe parlamentar de 2016 (WGS).


A degradação do processo político que daí resulta contou com apoio midiático e apelo classista, das classes médias e altas, cuja indignação resultou de seu inconformismo com as alterações na base da pirâmide social e com uma relativa aproximação social, via pautas de consumo, com as classes populares. Esta pequena intimidade social com os pobres incomodou a sensibilidade conservadora das camadas médias.





2)       de 2013 aos dias de hoje


Ponto de inflexão: golpe parlamentar de abril 2016


Em 2013 a insatisfação generalizada somada à frustrações com o sistema político, que se iniciara em S.Paulo,  a propósito do aumento das passagens de transporte urbano, ganha às ruas em várias capitais. A maré montante de protestos sofre uma metamorfose, nos meses de junho e julho, atendendo a convocatórias diversas, com diferentes desígnios. Fervilham os ânimos do humor popular.


A radicalidade retórica e passional que aí já estava presente deságua na campanha eleitoral de 2014, vencida por pequena margem por Dilma. A ira dos derrotados, segue-se a frustação dos eleitores de Dilma com seu surpreendente e assustador programa de austeridade e de ajuste fiscal (WGS).


Cria-se um ambiente de profunda divisão na sociedade, arma-se uma coalização de assalto conservador ao poder, que desemboca no golpe parlamentar de abril de 2016.  Esta crise continua aberta e terá outro ponto de inflexão com as eleições de 2018.


A combinação dos dois processos de crise afeta a totalidade da formação social brasileira, em seus níveis: econômico, social, jurídico-político-institucional, e cultural-ideológico











Em termos da organização política e institucional a crise se expressa:





- no Estado, que com suas estruturas de dominação, é a expressão e a garantia do processo de acumulação de capital. Este processo está em crise estrutural produzindo impactos desestabilizadores em vários países, e miséria social em quase todos. A crise de acumulação é debitada à suposta exuberância irracional da dívida pública e sua superação se daria via ajuste fiscal, isto é, ajuste dos ricos contra os pobres, que devem pagar a conta dos estragos produzidos por aqueles. É o austericídio, a macroeconomia da austeridade: cortes no investimento estrutural, nas políticas redistributivas e nos programas sociais.


A soberania popular foi anulada pelo golpe, e a soberania nacional está sob a batuta dos martelos dos leilões privatizantes.


 - no Regime (regime de exceção); desfiguração da Constituição de 88; desmonte do “Estado Social”; democracia “privatizada”; esgotamento da democracia representativa e do sistema de partidos, sua desmoralização, fim da Nova República;


- no Governo (ilegítimo e usurpador); Presidente golpista/usurpador, antidemocraticamente implementa políticas neoliberais, antinacionais, antipopulares; eleições presidenciais de 2018 com partidos grandemente desacreditados, ambiente de negação e desconfiança dos políticos e da política abre porta para aventureiros “apolíticos”, populistas de direita, que exploram as dificuldades, agruras, carências e inseguranças do povo, apresentando-se como seu salvador.     






Golpe parlamentar de abril/agosto 2016



O golpe de Estado de 2016 foi preventivo e dirigido contra a crescente capacidade de organização dos trabalhadores e o protagonismo dos movimentos sociais

 Os efeitos políticos e institucionais do golpe degradam o conjunto da nação, instabilizando o regime democrático, deformando e comprometendo seus princípios constitucionais e os instrumentos e mecanismos de operação governamental.

O golpe de agosto de 2016 “instalou uma democracia garroteada, humilhada e tutelada, de um lado, por juízes e mídia partidarizada; de outro, por uma escória parlamentar a serviço do mercado, que transformou o Congresso em uma assembleia permanente contra o povo”. (S. Leblon).

Câmara e Senado tornaram-se símbolos da crise da política e do sequestro da democracia.

O golpe de 2016 baseou-se numa coalizão que articulou as frações estrangeiras, financeiras, industrial, agrária e midiática do grande capital, a sua representação política  no Parlamento e na tecnoburocracia do Poder Judiciário, e um movimento de massas com fortes conotações fascistas, representado principalmente pelas camadas médias e superiores da pequena burguesia.

 Motivado a destruir a hegemonia do bloco de centro-esquerda e a emergência das esquerdas, o grande capital impulsionou e respaldou a atuação abusiva da Polícia Federal, do Ministério Público e da Magistratura para criminalizar a vida pública brasileira e atingir seus objetivos políticos. Para isso foi central a ofensiva ideológica dos meios de comunicação buscando situar a corrupção como principal problema do Estado brasileiro, o que justificaria o uso de medidas excepcionais para o seu combate.

A intervenção da magistratura e da procuradoria no sistema político brasileiro aprofundou assimetrias através da seletividade dos seus alvos; da falta de critérios legais, de proporcionalidade e de impessoalidade no estabelecimento de sentenças; e do uso casuístico, abusivo e normativo de métodos excepcionais de investigação, como a condução coercitiva e a prisão preventiva. Entre os alvos preferenciais da Procuradoria e da Magistratura destacam-se as lideranças políticas de centro-esquerda e de esquerda, as lideranças empresariais vinculadas ao adensamento das cadeias de valor produtiva e as lideranças de movimentos sociais e universidades públicas. Ignoram, por outro lado, amplamente a corrupção do Estado na articulação dos grandes negócios da burguesia brasileira que são a dívida pública e a especulação cambial.

Ao desorganizar o sistema político, a Lava-Jato solapa as condições institucionais para um combate eficaz à corrupção (Bruno P. W. Reis).  Ameaçando descaracterizar o Direito brasileiro com heterodoxias como restrições ao Habeas Corpus e aceitação de prova ilícita, a Lava-Jato não traz consigo qualquer consideração sobre as causas dos ilícitos que ela investiga.

A Lava-Jato, com seu messianismo populista desastrado, uma operação que se permite ela mesma violar a legislação enquanto acredita combater a corrupção, pode muito bem fazer retroagir esse processo por algumas décadas.


Autocrítica



A esquerda e os setores populares têm de enfrentar também e necessariamente seus próprios erros e equívocos, que não são poucos nem pequenos. Este balanço pode começar avaliando as insuficiências, limites e equívocos dos governos do PT, passando pela atuação dos partidos de esquerda, sua difícil unidade nos momentos críticos, suas dificuldades de conexão com as bases da sociedade.

Em 12 anos de governos de centro-esquerda foram dados passos efetivos na construção da soberania popular e nacional: aquela calcada na justiça social e em alianças internacionais progressistas.

Descuidou-se, porém, do indispensável: a contrapartida da organização popular para sustentar e adicionar avanços a esse percurso.

Se a esquerda, não reconhecer suas inconsequências, equívocos, desunião, dificilmente conseguiremos repor a soberania popular e as conquistas sociais, agora sob ameaça de desmanche.



Atmosfera política/ideológica

-  o clima de polarização que tomou conta do país  se não impossibilita, ao menos dificulta qualquer posição mais reflexiva e matizada sobre a conjuntura; 

-  manifestações irracionalistas de ira, ódio e outros afetos de uma subjetividade exacerbada penetraram os espaços dos discursos e das ações políticas, deslocando os termos e os modos da competição e disputa políticas, em grave prejuízo da democracia, notadamente na utilização de seus meios, instrumentos e instituições para superar a crise em que estamos mergulhados;

- o recurso à ira no campo político cobra um alto custo, como um furor arcaico-ensandecido indutor de violências; o foco emocional nesta condição potencialmente belicosa, precisa ser reposicionado para a domesticação da ira como cultivo de virtudes civis, de coragem e autoafirmação na defesa ou na promoção de legítimos interesses;

- a ira coletiva, sob qualquer pretexto, atropelando instâncias mediadoras como parlamento, tribunais ou debates públicos leva com frequência à “liberação de energias vingativas não filtradas, ao ressentimento e aos desejos de extermínio “ (Peter Sloterdijk);

 - vive-se um tempo de desfaçatez política, de imposturas, demagogia e manipulação; de elitismo conservador e violento na manutenção das abissais desigualdades econômico-sociais com toda a carga de cinismos e preconceitos que o caracteriza;

- difunde-se uma retórica alarmista e inflamada da extrema-direita que transforma o medo em ódio. O discurso de ódio é aquele que estimula a violência contra determinados indivíduos ou grupos e está associado à abordagem moralista da política, que tem sido o eixo discursivo-ideológico da direita;

- isto se materializa em ações violentas contra as minorias, mas também contra os setores populares e progressistas. Forma-se um círculo vicioso, prenúncio de uma ruína generalizada. A desordem gera medo. O medo reverte-se em ódio. O ódio, em exceção. E essa, por sua vez, em caos.  Essa foi a dinâmica do nazismo, que arruinou a Europa. Algo similar está ocorrendo em nosso país (Eduardo Migowski);

- esta postura escora-se num juízo moral superficial e quase sempre hipócrita, abstraindo do contexto histórico. Não reconhece a complexidade dos processos sócio-políticos, embaralha as circunstâncias objetivas com as responsabilidades subjetivas, e com respeito a estas, não distingue as responsabilidades dos grupos dirigentes daquelas que cabem a indivíduos singulares.




O que está em jogo?

 O que está em jogo é a reflexão e as consequentes ações sobre a necessidade premente da “reorganização mais ampla do campo progressista” sobretudo em um contexto marcado pelo avanço das forças de direita no país e no mundo.



  Correlação das forças políticas

Dada a atual hegemonia dos setores liberal-conservadores e a correspondente correlação de forças, os efeitos socialmente danosos incidem com brutalidade inaudita sobre o conjunto das classes populares e a massa dos trabalhadores. Esta correlação não está dada, fixa, mas se desenvolve e se altera no processo de enfrentamento e das disputas



ESQUERDA

A.    Organizações, polos, forças políticas



B.     A questão da unidade/fragmentação das esquerdas



C.     Sua relação e capacidade de creditar-se e obter adesão de outros segmentos sócio-políticos



A.    Organizações, polos, forças políticas

- três polos ou centros de gravitação (forças políticas, que organizam um “campo” de disputas)

-  inter-relação complexa das diferentes esquerdas face às distintas esferas sociais.

- relações de complementariedade e interdependência entre as três



 Três  grandes “correntes” (tipificadas e não excludentes entre si)

 1) uma esquerda institucional-parlamentar ou “estadocêntrica”;(ref. Estado)

 2) a esquerda dita tradicional-radical ou “saudosa”; (ref. Capital)

 3) a esquerda fragmentária ou dita “pós-moderna” (ref. Cultura)



1) esquerda institucional-parlamentar ou “estadocêntrica
Corresponde ao pragmatismo de esquerda clássico, que encontra centralmente no Estado a razão e causa maior do poder. 
- opção pelo reformismo gradualista e a crença na capacidade de alcançar uma sociedade justa e livre pela via incremental, sem rupturas;
- no aspecto político essa forma de ver a mudança social acaba encontrando afinidade com o institucionalismo utilitarista e a indefectível paixão pelo poder, produtos de uma grave confusão entre mudança e manutenção da realidade;
-  ao tentar civilizar o capital, acaba por ele ‘civilizada’.
Risco: cooptação, busca do poder pelo poder



2) esquerda dita tradicional-radical ou “saudosa
 - desconfia da cooptação pelo Estado burguês, apostando suas fichas no socialismo e na revolução;
-  vinculada discursivamente a um mundo pré-queda do Muro de Berlim, como numa grande elegia dos “sobreviventes” da história, presa a questões de outro tempo;
Risco: dogmatismo/sectarismo, elitismo político e nanismo, afastada de questões que governam o senso-comum e a vida cotidiana das maiorias sociais



3. a esquerda fragmentária ou dita “pós-moderna
- orienta-se pelos movimentos transitórios, na particularidade como elemento constitutivo, no relativismo, contra a fixidez das estruturas;
-  crítica ao capitalismo, quando é o caso, dá precedência à dimensão ético-comportamental, descurando de suas tensões sistêmico-estruturais; sobrevalorizando, dessa forma, esferas micropolíticas de atuação em detrimento de sua contraparte macrossocial;
- acaba jogando água no moinho da fragmentação político-organizativa. Ao apostar as fichas na fluidez das redes sem dar devida atenção aos seus constrangimentos e limites, termina refém de conceitos de horizontalidade e autonomia não raro esvaziados de conteúdo material
Risco:  ação fragmentária, individualista e performática 




B.     A questão da unidade/fragmentação das esquerdas


Ironia: a esquerda só está unida na lamentação comum, constatando sua desunião.

O problema da fragmentação das esquerdas só é um problema se vinculado a nossa incapacidade em acumular poder social.

Colocar a situação é dizer que a esquerda está dividida em partes que não se comunicam, e o problema seria, portanto, pensar sua união, a combinação de seus pontos positivos, abdicando dos aspectos negativos que impedem essa formação sinérgica

 O caminho circular que vai de um tipo ao outro de esquerda acabou por se tornar a via sacra de militantes frustrados e desiludidos com seus próprios espaços de atuação política, sempre em busca de seu próprio (e, por vezes, individual) paraíso organizativo.

Busca de convergência e unidade

Da esquerda de primeiro tipo, buscaremos manter o necessário pragmatismo da ação: o planejamento e a busca pela concretização de novas de propostas de governo, permeada por valores radicalmente democráticos, e que falem diretamente para as necessidades mais prementes e cotidianas das pessoas, no “agora”.

Da esquerda do segundo tipo, nos caberá manter o vigor crítico, a tenacidade da resistência abnegada, a radicalidade anti-sistêmica e a orientação para projetos estratégicos que tenham como horizonte a superação do capitalismo.

Da esquerda do terceiro tipo cumprirá reter, em tempos de crise civilizacional, o compromisso com uma renovação ético-estética da política, a criatividade e irreverência na produção de novos arranjos organizativos, o valor da sustentabilidade, o respeito à diversidade e a desconfiança consequente da razão.

Assim se buscaria superar uma dinâmica em que as deficiências de cada corrente alimentam as certezas e funcionamento das demais.

Reconhecer que há uma espécie de trâmite organizacional entre partidos com potencial de disputa do Estado, pequenas organizações radicais e movimentos sociais identitários.



C.    Sua relação e capacidade de creditar-se e obter adesão de outros segmentos sócio-políticos

 -  processo de erosão mais ampla de sua força e capacidade de adesão social; de sua possibilidade de apresentar e construir algo passível de crédito por parte dos demais integrantes da sociedade;

- na prática, em toda a sua heterogeneidade, as esquerdas têm fracassado em sua disputa da sociedade;

- uma esquerda desorientada, desconectada de si mesma e da sociedade, e portanto impotente e incapaz de efetuar transformações estratégicas no mundo; estaríamos enfrentando “uma espécie de travamento operacional, sem horizonte, e sem visão de futuro”;

- são necessárias alianças políticas inovadoras, novas formas de participação popular autônoma, novos militantes e lideres com atuação permanente nas ruas e bairros pobres das cidades e nos campos; 

-  para resgatar a democracia não lhe bastam suas próprias forças, suas organizações e partidos, é necessária estabelecer alianças, atraindo segmentos e forças do centro político, que em algum momento se desprenderão do atual bloco de poder;



- A esquerda precisa não só se compor entre si, enquanto partidos, organizações e movimentos, mas também construir caminhos, meios e instrumentos para se inserir na base da sociedade, se aproximando das camadas populares ainda não conscientes ou organizadas, conquistar sua confiança, auxiliando-as na construção de sua identidade social, de sua cidadania e protagonismo político.

Uma vez passada a ressaca antipetista dos últimos anos, a esquerda precisa reconquistar amplos setores populares e das classes médias que foram iludidas pelo falso discurso do moralismo anti-corrupção.   Com o passar do tempo deverão dar-se conta de que foram massa de manobra de grupos poderosos e dominantes, e poderão, não sem traumas e alguma resistência, abrir-se para rever entendimentos e posições políticas.

 Eleições 2018

-  cada vez mais ameaçadas

- eleições: nunca ficou tão explicito, como nos últimos anos, o domínio do capital sobre a soberania popular. O dinheiro, o mercado, anulou, nas democracias liberais, a principal força que controla ou modera a dinâmica espoliativa do capitalismo, o sufrágio universal;

- reforma política: Congresso, de costas para a sociedade, discute um pacote do que chama de “Reforma” PolíticaNada, no que está em debate, permitirá que a sociedade tenha algum controle sobre o que é decidido em seu nome;

-emenda parlamentarista possível, ou exclusão arbitrária do candidato favorito, Lula.  Sua condenação e a criminalização de sua imagem se explica como ato político urgente diante da ameaça de sua eleição em 2018;

- os golpistas não deram o golpe para em seguida entregar o poder. O golpe não foi contra Dilma ou o PT; foi contra a democracia e os direitos.



Horizontes/projetos em disputa



a.       das elites, da direita



- dissociadas de um destino nacional soberano, sua concepção de república: a taxa real de juro;



-  as elites abdicaram das responsabilidades e valores compartilhados que definem uma nação democrática e inclusiva;



- seu projeto hoje tem um nome: políticas de austeridade, que é sinônimo de acumulação rentista. A austeridade não foi apenas o preço para salvar os bancos, na crise de 2007/2008. É o preço que os bancos impuseram para que os outros paguem. A austeridade compulsória é transferida aos assalariados.







b.      Dos setores populares/progressistas:

- tensão: somos pessoas ordinárias (reprodução social sob o capitalismo, onde estamos inseridos) querendo algo extraordinário (transformação social);

- o engajamento com as organizações de esquerda exacerba a tensão entre o mundo que nos determina e o mundo que queremos determinar;

. está na mão do “povão”, das maiorias sociais como minorias políticas, o destino político do Brasil; de sua  passividade/impotência ou de sua resistência/avanço nas lutas;

. há grande dificuldade em caracterizar o “povão”: precariado, subproletariado, nova classe média, nova classe trabalhadora, classes populares, enquanto nos debatemos em análises e definições, a esfinge se move, age, muda o mundo a nossa volta, nos devora;

 O povo para a elite é um detalhe. O povo é uma ficção. O povo é um ente que assombrava nossa elite, mas que, agora, ela pode descartar como sendo simples superstição (LF Miguel).

   Está na hora de disputarmos as classes populares com uma outra ideologia, com um novo discurso de valores e nova prática transformadora (militante, de base, aberta para a organização e construção conjunta com esses setores em todo o seu caldeirão de contradições).



- mudanças profundas que ocorreram na sociedade brasileira ao longo das últimas décadas, que alteraram de forma estrutural o tecido social do país:   ocorrência de uma “pluralização social e identitária” articulada à emergência de novas juventudes, às mudanças na classe trabalhadora e na classe média, à conformação de novas religiosidades e, sobretudo, à configuração de  novas formas de organização e participação na esfera pública das chamadas “minorias”.



Toda esta energia que se move “por baixo” na sociedade brasileira ainda não teria encontrado escora e mediação no sistema político, e a esquerda partidária particularmente, a despeito de alguns movimentos importantes, não teria ainda logrado sucesso em dialogar com essa heterogeneidade de movimentos, articulando suas demandas ao sistema político mais amplo.



Pensar em um projeto estratégico de longo prazo, nessa perspectiva, implica em um movimento mais imediato que se vincula à necessidade de a esquerda sair do isolamento atual em que se encontra e dialogar com setores dos quais se afastou no contexto da radicalização política pela qual o país atravessou recentemente.

Resistência e luta



“Nossa maior derrota é a incapacidade de resistir” (L.F. Miguel).

Tudo de que não precisamos é de resignação. A política de resignação das classes populares consolida o golpe e a hegemonia neoliberal.

Podemos estar um tanto desalentados, mas não devemos cair na paralisia ou no pessimismo; nem nos deixar atropelar pela impaciência ou confundir pela exasperação.

 Na luta que travamos devemos estar motivados pela paixão, mas instruídos pela inteligência. Pois é fácil pôr os pés pelas mãos, nos movendo ora pela paixão sem inteligência ora apenas pela inteligência sem paixão.

A realidade é que perdemos nossa bússola política, um horizonte político emancipatório em torno do qual nos conectamos e disputamos a sociedade.

Não estamos num momento de acumulação de forças, pelo contrário.

Precisamos nos dar conta das transformações da sociedade capitalista, e a partir desta compreensão concebermos novas formas de organização política, articulando-as com ações programática e pragmaticamente consequentes, visando objetivos políticos estratégicos.

 Convém entender o processo histórico-político ocorrendo por movimentos ondulatórios, de ascensão e descenso, correspondendo às expectativas de avanço ou proteção contra políticas adversas.

É vital reconhecer que os ciclos históricos têm um começo e tem um fim. Vivemos essa intersecção típica em que o novo ainda não emergiu e o velho já não tem o que propor ao futuro.  O golpe é a manifestação mórbida mais explícita dessa encruzilhada. (S. Leblon).

As disputas interburguesas podem levar à desorganização da coalizão golpista abrindo às esquerdas uma janela de oportunidade de mobilização e projeção política.  Para aproveita-la, no entanto, é preciso ultrapassar muitos obstáculos.

Talvez aqui devêssemos distinguir entre ações orientadas pela radicalidade ou pela moderação política. Uma ou outra podem incidir com eficácias variáveis em campos e momentos diversos das lutas e confrontos. Os atores ou protagonistas dos conflitos podem ser radicais ou moderados quanto a retórica e discursos, quanto aos meios, métodos e recursos de sua ação, e finalmente quanto aos objetivos que perseguem. Saber mover-se utilizando estas diversas possibilidades pode significar ganhos ou perdas, avanços ou recuos em suas posições.

 Alguns propõem saídas voluntaristas, de verbalização tão simples quanto falsa; outros, aparentando prudência desmedida capitulam diante do que lhes surge como uma inevitabilidade recessiva exigida pelos mercados.

É preciso pois grande empenho para retomar os espaços de soberania e planejamento democrático, formulando um novo programa a ser assumido por uma frente democrática e popular que se proponha a assumir a frente da nação e o comando do seu desenvolvimento.

  Isto não será obra que se possa atribuir a uma liderança ou a um partido isolado. O país requer a viabilização de “um novo braço coletivo capaz de sacudir o torpor da esquerda, afrontar a soberba da direita, abrir espaço à organização popular e assim preencher o vácuo de futuro e esperança no qual a elite pretende asfixiar o destino de mais de 200 milhões de pessoas na oitava maior economia do planeta.



A travessia requer a força e o consentimento que só podem ser obtidos se a tendência à fragmentação for substituída pela construção urgente de um amplo palanque presidencial progressista.

As forças progressistas precisam ir um pouco além de si mesmas, rompendo com uma perspectiva sectária, abrindo diálogo com outros setores da sociedade, em especial a classe média, que fez grande inflexão à direita.

É fundamental descobrir como dialogar com esses setores, ganhar hegemonia sobre uma parte deles, neutralizar outra e reduzir a influência de seus setores mais conservadores.

Buscar aliar-se em questões concretas, lutas pontuais e urgências que incidam sobre as condições de vida e trabalho que impactam negativamente amplos setores da sociedade.

Isto passa também pelo desafio de transformar populações iludidas pelo mito de consumo em coletividades combativas, grandes contingentes despolitizados em cidadãos ativos, conscientes de seus direitos e de suas responsabilidades.

Aí inclui-se a necessidade de recuperar a dignidade da política, confrontando a crítica corrente aos políticos, aos partidos e à política como tal; ora acusa-se os partidos por irresponsabilidade, ora o eleitorado por incompetência. Este discurso conservador, que induz à indiferença e a apatia, apenas revela o descompromisso com a democracia, a demonização do Estado, a anulação da soberania popular.



Relações pessoais e conjuntura política

Vivemos um tempo critico de mudanças e também um tempo cínico em que triunfam as astúcias de hegemonias anti-povo e contrafações da pós-verdade.

Haja discernimento, serenidade e disposição para vivê-los sem naufragarmos em suas vertiginosas correntes, ou em seus lagos estagnados ou putrefatos.

  Ambientes tão densos e atmosferas tão carregadas, lançam desafios a nossa capacidade de transitarmos por eles sem abdicar de valores civilizatórios, práticas democráticas e atitudes gentis, orientados por ideologias não dogmáticas e por opções políticas não sectárias, de tal sorte termos assegurada uma convivência que não negue a diversidade, a disputa e o conflito, mas que garanta a integridade, o respeito, o reconhecimento e a dignidade de todos.

Este é um tempo que nos testa; testa nossa capacidade de entendermos o que está acontecendo, desafia a pertinência de nossas posições e alinhamentos, nos interpela quanto à direção a seguir.

É um tempo em que as macro engrenagens da história podem impor-se devastadoramente sobre as micro engrenagens dos indivíduos. Conviria calibrar os termos das biografias e trajetórias pessoais com os que são próprios dos processos sócio- históricos. Em termos práticos, como estamos constatando, não é produtivo nem consequente transplantar o conflito político, sem mediações, para o plano de nossas relações pessoais, especialmente quando tentamos convencer alguém da justeza de nossas posições ou da validade de nossos argumentos políticos. Entre os que apoiam o golpe e os que lhe resistem há um fosso não apenas de posições políticas, mas de concepções de sociedade e de visões da história.

Não há nenhuma possibilidade de conseguirmos que alguém mude de opinião se à argumentos são contrapostos valores cristalizados, preconceitos arraigados, disposições de espírito prenhes de ira e de ódio.

Não deveríamos aceitar provocações, nem entrar em conversas sobre política nestes termos; seria nos rebaixar ao nível da ignorância, do primarismo e da intolerância que vemos difundidos por amplos contingentes sociais nesta conjuntura, dada a massiva, monopólica e pervasiva presença de uma mídia hegemônica, conservadora, desonesta e manipuladora.

Hoje os afetos da vida privada estão sob os influxos tormentosos da vida coletiva, as relações pessoais sob o signo da virulência política.   

Estamos mais uma vez convidados a dar um passo adiante. Adiante de preconceitos enraizados, de entendimentos viesados, de compreensões fragmentárias; distantes da intolerância, do fanatismo e de outras tantas aberrações que nos impactam, degradando o presente e comprometendo o futuro.

 Estamos sendo puxados para fora de nosso comodismo, de nossa apatia ou de nossa indiferença, vemos como somos afetados pela ação dos outros (como sabemos “o inferno são os outros”), impactados pelas situações de conflito político e ideológico e pela exacerbação do irracionalismo.

Uma disposição de luta política consequente poderia ser assim resumida: Não aceitar nenhum combate que possamos evitar, nem evitar nenhuma luta que precisamos travar.

As derrotas e fracassos nunca são totais e absolutos. Podem ser um inevitável ou necessário estágio no inferno, quem sabe para, com seu fogo, aquecer e moldar os instrumentos de luta.

Como observou Marx: “É o lado mau que produz o movimento que faz a história”.

 Parafraseando Tácito, um alerta final: “Enquanto lutamos separados, somos vencidos juntos”.

Citações/referências




- Wanderley Guilherme dos Santos, A democracia impedida. O Brasil no século XXI, FGV, 2017

- Peter Sloterdijk, Ira e tempo. Ensaio político-psicológico. S.Paulo, Ed. Estação Liberdade, 2012

- EduardoMigowski, Como Foucault e Agamben explicam Bolsonaro. 29/06/2017, Outras Palavras

- Bernardo Carvalho, “Moro dispensa o teatro da razão, em nome da verdade da imagemFSP, 14/05/2017

- V.  Safatle, FSP, 30/06/17

- Saul Leblon. Bye, bye, Brasil”. Carta Maior, 27/06/2017

- Edemilson Parana, Três dimensões da tragédia da esquerda no início do século XXI,  29/06/2017, Blog Boitempo

- Gabriel Tupinambá, Da tragédia à comédia, Um comentário sobre "Três dimensões da tragédia da esquerda no início do século XXI", de Edemilson Parana,  04/07/2017 , Blog Boitempo

- “A esquerda diante do poder: do trágico ao cômico para o tragicômico.” Tréplica de Edemilson Paraná ao comentário de Gabriel Tupinambá a seu artigo sobre "Três dimensões da tragédia da esquerda no início do século XXI".14/07/2017, Blog Boitempo

- “A força social da graça, ou: como se avalia o poder popular? ” 26/07/2017, Gabriel Tupinambá, quadrúplica a Edemilson Paraná no Blog da Boitempo

- Carlos Eduardo Martins, Nove teses sobre a crise política brasileira. Blog Boitempo, 29/05/2017

-Jean Tible,  Brasil, salto interrompido, Outras Palavras,  03/08/2017

- Bruno P. W. Reis, A Lava-Jato é o Plano Cruzado do combate à corrupção. Novos Estudos CEBRAP.

- Fernando Perlatto. “ As esquerdas e a conjuntura do tempo presente”,  Resenha de Domingues, José Maurício. Esquerda: Crise e futuro (Ed. Mauad X, 2017).

Jessé de Souza e a esquerda sem ideias próprias. Outras Palavras, 10/08/2017

Eleutério f. s. Prado.  Subiu no poleiro, voou mais alto e despencou, Outras Palavras, 09/08/2017



2 comentários:

Remy JF disse...

Carmen, grato pela divulgação de minha intervenção no seminário do NESSOP-UFSC. Tua "edição" da postagem ficou bem bacana. Gostaria de esclarecer que o texto não é propriamente uma elaboração acadêmica e nem se destinava à publicação, mas ser apenas um roteiro/esquema para minha exposição. Daí decorre ser quase uma colagem de várias contribuições, embora obviamente com alguma elaboração própria. Meu trabalho foi mais de sistematizar as questões, organizar argumentos, numa tentativa de síntese da pletora de dados, informações e análises correntes sobre a atual conjuntura.
Abraços, Remy JF

CARMEN FOSSARI disse...

Remy Fontana uma oprtunidade rara termos desde teus escritos este. " mapeamento" do momento que vivemos ,agradecemos tua generosidade de permitir que fosse publicado!!
Abraço
Carmen F.ossari