Marespelho
Carmen Lúcia Fossari
Se me lembro bem foi o Joca Grandäo o homem que
mais trabalhou para a criação da nossa cooperativa, ele e o seu Paulo Wright,
que vinha lá do Paraná. Dizem que lá tinha ajudado o pessoal da terra para
que formassem cooperativas agrícolas. Homem bom, dá saudades
só de lembrar dele.
Também ele queria uma escola e o posto de saúde
ora se não! O desejo dele tinha parecência
com o meu e, é claro, era o desejo em irmandade de vontade, com o de todo pessoal da Vila e igual por parte
das colônias de pescadores de todo esse litoral de Santa Catarina. Luiza não parava de repetir: “homem de Deus, dividir tudo o que deu
na rede de quinhão igual para todos que pescaram
e termos o que é da gente, assim de ter e de ser da gente mesmo, umas redes de pesca
para o caceio das corvinas e não ter que pedir emprestado nem barco, nem rede
isso sim há de ser o nosso futuro bom”.
Eita cabeça que já não socorre - pudera
faz prá mais de 20 anos e parece que
foi ontem...mas a imagem dele eu vejo entre a fumaça do fogaréu , lá estava ele
o seu Joel ajudando a milícia tacar fogo nas nossas redes e no freezer da
cooperativa. Ano de 1964!
Me lembro dele com duas latas de querosene nas
costas, a fazer de conta que carregava era a água da bica d’àgua umas horas
antes de começar o incêndio.
Agora Jordelino escuta barulhos. A
aparelhagem ali dentro só dá para ver espiando
e nas pontas dos pés sobre aquele
beiral. “Máquinas dessas só mesmo prá
doutor da cidade”.
Olha
as horas no relógio de pulso e vê uma hora e ainda mais trinta minutos da
noite. Da noite não, da madrugada! Da madrugada não, do dia que há de nascer! Dia,
noite, noitedia.
Jordelino
coça a cabeça. Manhã., noite ou madrugada e já passaram outras as voltas dos ponteiros a girar. E ele pensa que nesse
momento Nossa Senhora dos Navegantes já foi dormir e só ficou acordado o Menino
Jesus, que há de protege-lo, enquanto ele cuida de tudo isso, nessa noite que
não acaba mais, ali do lado de fora das salas, ele vigiando .
Ensimesmou outra vez : E desde quando Pombeiro ia ficar do lado da gente?
Seu
Joel queria mais é ver tudo virar cinzas, o fogo ardendo, vermelho pulando em
línguas escaldantes e a fumaça tudo acinzentando era para parecer ter sido um acidente. Quem nasce prá ser pombeiro nunca haveria de ser bombeiro, e ainda tinha o
pessoal da Vila, todos juntos de não querer à milícia, e ela ali dia a dia
cercando. Os avisos , avisos não ameaças ,até em alto falantes aquela gente
gritava :cooperativa é coisa de comunista, do diabo, de gente sem coração!
Sem
coração foram eles, colocar fogo na escola, nos livros, escorraçarem os
professores; fogo na sede da FECOPESCA ! Uma união das colônias dos pescadores
por todo litoral .Ela era o coro dos pescadores, que o vento sul sibilava pelas
costas do mar, do mar das terras de Santa Catarina. Nossa cooperativa de pesca...
repetiu um pouco sonolento. Lacrimejou. Um dia ele teve um sonho, todos teriam
um futuro de mar e vida tranquila para as suas famílias.
Jordelino conteve um soluço e balbuciou o
sonho queimado :Federação das Cooperativas de Pesca Catarinense.
Ela não seria luxenta e as redes e os barcos de pesca de seu Joel, o pombeiro,
iriam acabar emaranhados . Paranhos.Que tudo virasse paranhos de tanto não serem mais usadas.
Parados, sem serem mais “alugados” como poste sem serventia, quando a luz está
queimada.
Um dia
o Joca Grandão ficou de brabeza , mas daquela bem braba mesmo. Disse
pro seu Joel: o senhor fica aqui no seco e a gente vai mar adentro, arrisca a
pele nos perigos do mar, e quando
voltamos com o barco cheio de peixes, nós que vamos em cinco homens pra além da
arrebentação das ondas dividimos em duas partes a pesca, metade pro senhor e a
outra metade dividimos ainda em seis,
porque o senhor ainda quer uma parte da nossa metade. Dai o Joel pombeiro
respondeu que quem não estivesse satisfeito que fosse pescar com vara de pescar
feita de bambu lá no molhe da praia. Só mesmo o
seu Paulo para ajudar a gente ver que aquilo não era o
certo, tudo iria mudar .
Jordelino lembrou da Dona Nena falando que mar é de todas as estrelas quando a noite
desce, é também de todas as ondas, as calmas
e as violentas então peixes do mar também seriam para todos!
Agora pensou estar
tomado de febre, porque seu pensamento agia como um pião,são três horas,
da manhã, da noite ou da madrugada.
O som do apito agudo, vindo de uma quadra
depois, fez com que o funcionário, com número de matrícula 231(carteira assinada?)
corresse a fim de acionar o botão. Um botão escarlate, esse botão. Na verdade o
botão nem é botão, é sim uma sineta eletrônica, cuja única tarefa é a de
comprovar ao chefe do setor, que ele permanece em vigília, de olhos ainda bem
abertos.
No cômoro eu ficava de vigília. Fora!
FOORRAAAAAAA!
FOORRAAAAAAA! Corre a Maria, depois o
Zequinha, depois a Candinha, depois a Maralda, meio andando e rodando as saias
longas, pretas de viuvez, a Oralda quem menos corria, a ficar parada com a língua
acionada no diz que me disse e nem disse. Mas dizia sim da vizinha que virou
borboleta na lua cheia e foi vista depois nua dançando sobre as pedras e não
encerrava os ditos, da outra vizinha o dizer era que entrava pelo buraco da fechadura nas casas, para enfeitiçar e que vizinha nenhuma prestava,
ainda mais agora, que frequentava a nova igreja da praia com uma bíblia nas mãos, mesmo que ainda não juntasse bem
letrinha com letrinha ao tentar ler as
finas páginas do livro que logo voltava a ser fechado. Na correria
depois de escutarem o FOORRAAAAAAA o Toninho da Odenilda , com suas perninhas
em arco, e por isso querendo ser, quando crescer Garrincha, e depois o Zé
d`Alhu, sempre ébrio a gravatear com garapuvú , n`agua berrando no coro da vila
que o cardume das tainhas está bem perto: FOORRAAAAAAA !
As vozes forte prosseguiam enquanto eu
acenava com meu velho paletó para a Vila já então colorida de prata em prata
peixe de alumínio as bacias correndo nas mãos das gentes em alegria. Movimentos
ágeis e rápidos de mãos, redes, água, n`água barrenta, barreada, n’água
esperança, prateada de parir peixes, da tainha nossa de quando tinha.
Da parede , do lado direito o grande
relógio sonoriza os Tic-Tac. Nessas quatro horas tique-taquear ouvindo pode
ensurdecer qualquer um.
O funcionário 231, diz para si, com
convicção, que é urgente ir no velho Gabriel, lá da freguesia da Lapa, fazer uma
benzedura porque lhe dói toda a coluna. Sim o único ser de calças compridas e
barba no rosto que faz benzedura em toda ilha é o seu Gabriel, que no demais só
se há de conhecimento as mulheres. Mulheres , algumas poucas, podem benzer e outras podem ser bruxas. Os dois feitos em uma
mesma mulher de ser ser benzedeira e também bruxa nunca ele teve conhecimento, mas poderia
existir , tudo pode existir no mundo pensou.
As benzedeiras abençoam e as vezes usam um unguento; as mulheres
bruxas sem o unguento não criam asas; que complicado a natureza que as mulheres
possuem falou à si no momento em que só desejava era ser benzido pelo Gabriel
da Lapa. Se encontrasse um dia mulher bruxa que também benzesse, dai ia querer
ser benzido, bendito . Seria uma reza braba e nem o Menino Jesus seria
invocado! Fechou os olhos e acalmou a febre, o sorriso de Luiza sempre lhe
trazia ternura!
O rosto ainda um pouco suado, Jordelino sabe
que longe do mar, fazendo o serviço de vigia, trancafiado numa sala é uma presa fácil dos pensamentos que vão
atravessando a mente, talvez até embaralhando.
O
velho Gabriel pode benzer os ouvidos e
também os olhos, mas são os pés encharcados no sapato bem gasto que fazem
Jordelino sentir a chuva fininha batendo no telhado, e entrando na portaria.
Uma torneira aberta e horas depois percebe que o carpete da sala do Doutor inundou. Tanta àgua por uma torneira aberta
na cidade, longe da praia, água tanta e
não é do mar!
Nervoso
com o molhe de chaves nas mãos , só percebe que entrou na sala, fechou a
torneira, chaveou a porta do consultório, ao guardar mecanicamente o molhe de chaves
numa gaveta. Na portaria.
Olha
o Camaraaaaãããooo! O vento suli, corria
a voz para bem longe. Ainda menino e já ia para a cidade com o pai. Iam “de a
pé”, caminhavam ainda de noite e
chegavam na cidade tudo bem claro. Paravam no Itacorubi, tomavam café na casa
da comadre da mãe e do pai, e seguiam à
cidade.
Dizia o pai: “Jordelino meu filho não
estás cansado? Queres tomar um pouco de caldo de cana? Eu sei , filho meu. Tu
ficas de escuta e é só saber que venho para a cidade com balaio cheio de
camarão que te enveredas logo, a querer ajudar o pai. Mas de querência mesmo é
vir nesse mercado tão grande e” prá modu “de
tomar caldo de cana! Queres outro?!
E o pai não cansava, ele tinha saúde
para caminhar desde a praia à cidade e ainda adentrar no mar adentro uma noite
toda dentro de uma bateira a pescar.
Ele só não gostava de passar em frente das
peixarias, logo cruzava a rua.
“Dono de Peixaria, é que nem Pombeiro”,
dizia ele, ganham lucro com os braços da gente. O pai ria muito quando contava
das Donas Marias, da cidade.
- O Vento Suli tá brabo
né Dona Maria?
- O meu nome não é Maria,
é Irene !
- Certo Dona Irene, vai
levar hoje um quilo e meio de camarão, fresquinho?
- Moço, havia gritado uma
voz bem miúda, - o nome dela também é Maria também
é Irene Maria.
- Então eu acertei, vai
levar dois quilos freguesa?!
O pai gostava de contar histórias da cidade,
dizia que lá tudo era complicado .
Quatro e tantos minutos, muitos segundos e a mesma monotonia. Tinha coisa
melhor do que essa lágrima salgada que nem o mar a descer pelo rosto nessa
madrugada de ser vigia. Era quando chegava a sexta feira que a noite era mais
longa, porque no fim de semana tudo antes era mar. Mar, tanto do mar para ser
feliz. A família se reunia e ele levava uma tanhota que sabia pescar tão bem.
Como foi feliz quando ia todo dia, toda
noite mar adentro. Agora tinha que ficar
no seco, trabalhar na cidade que nem passarinho preso em gaiola, os compadres
sempre me culpando, daquele incêndio que não consegui defender mas como podia
eu deter aquela fúria e ódio? Quando as
pessoas se transformam em bicho , ninguém pode com elas.
Dona Luizinha, mulher do Jordelino,rendeira
que é faz renda de bilro enquanto ele estende no quintal da casa uma tarrafa que conserta com
fio de nylon. É com os trocados
desses bicos que podem pagar estudo para o filho. Luizinha é uma mulher de
muita paixão, por tudo e pelo Jordelino então, nem se fala! Fizeram corrida de
ganso ela tinha 16 anos e ele 18.
Os dois tem muita bem querência em toda Vila e na freguesia vizinha também. A
almofada de bilro como o tique taque da noite,
traz o som de madeiras que vai trançando pontos.
- Quer vender essa renda? O som de
palmas interrompe seu pensamento, responde qual, essa de Boca de Sino? A
cumadre, há de querer comprar?Então pode levar Nena, só me pagas o preço da
linha. A linha tá muito cara, ah tem essa daqui , amarelinha, tá bem vistosa.
A viúva do Joca Grandão, Dona Nena, é muito
estimada por todos que moram ali,
vizinhos do mar. Ela foi uma grande mulher, pioneira da vila em todas as
mudanças e feitos. A primeira pessoa que quis escutar o Deputado Paulo Stuart
Wright sobre os benefícios de uma cooperativa de pesca. Reuniu em sua casa os pescadores
mais velhos para a primeira reunião com o Seu Paulo. Ia para cidade e voltava,
com cadernos que estudava, de como em outros países as cooperativas melhoraram
a vida dos pescadores, se o mar é tão rico, porque nós precisamos viver pobres?
Escola para os nossos filhos,
termos lugar para armazenar pesca, e tanta coisa que estudou com os cadernos e as falas de Seu Paulo e da dona
Eliane que morava na rua Urbano Salles, e ficou presa em casa, com soldado
plantado na frente da sua casa, porque diziam que era comunista, uma mulher tão
doce, com três filhos . E quando o ano de 1964 chegou, e os fardados da cidade
vieram colocar fogo na FECOPESCA, e prender os pescadores mais antigos, a Dona
Nena foi a primeira a lutar para apagar o incêndio no galpão pronto. Logo que o Seu Paulo
desapareceu, ela tentou socorrer as cooperativas pelo litoral catarinense...Ela e os
camaradas.
Depois de tudo destruído, e viúva do Joca
Grandão, que morreu torturado nunca mais esqueceu do ano de 64 mas jurou por sua alma, que não deixaria de
ser feliz e de lutar para que as pessoas soubessem que sim é possível viver melhor, quando um grupo unido ,
acredita num sonho.
Anos depois Dona Nena abriu uma vendinha , na beira da praia, e só
não venda peixes. Deu de mudar os costumes, parece que o mar lhe ficou mais distante, porque já não olhava
mais para ele .Para sustentar a família aprendeu a comerciar, coisas miúdas, mas que careciam
na Vila.
Criou uma caderneta/promissória de honra,
com duas capas, a de cor branca:
pagamento quando o mar estiver para peixe e cor azul do mar, pagamento quando
os pescadores embarcados para o Rio Grande ou Santos retornavam às suas casas.
Na venda/armazém da Dona Nena , havia uma
exceção , na época da tainha, ela
comprava para mais de 10 balaios bem cheios da famosa habitante do
mar, quase um cardume dizia em exagero. E então
a Nena, da cooperativa, renascia preparava as tainhas e um pirão
caprichado, se colocava a fritar e também a assar , com a ajuda de todas as
vizinhas faziam ainda a tainha de preferência de todos: a escalada e no domingo ao meio dia toda a vila
ia no quintal da venda, comer e festejar a safra da tainha.
Os pés rodopiavam na ratoeira de vozes tão
femininas mas acompanhadas pela rabeca e o violino do Pão por Deus do seu
Maneca e do Osório. Os pontos da renda de bilro, feito ourivesaria adornavam
saias de chitão de cores escaldantes verde, vermelho, amarelo , saltitantes
cores e flores nas saias e nas camisas dos
homens , o chapéu de domingo de palha ainda inteira e vincada. Uma roupa
a parte era o terno branco do Sebastião ,o forasteiro da cidade , que mora sozinho
na casa da esquina e pouco falava, as vezes vinha uma mulher da cidade de carro
que parava na frente e ficava o dia inteiro e a noite também, saia e ia embora
no dia seguinte quando amanhecia, antes mesmo do galo do quintal da Benedita se
colocar a gritar mais forte que o som da maré alta estourando onda na praia.
Dizem que foi mulher do forasteiro, coisa assim de papel
passado como fazem na cidade, não coisa
de corrida de ganso como é costume aqui na praia , comentavam. Corrida de ganso
era coisa boa, o rapagi avisava a
família que ia trazer a namorada. A namorada ia de a pé, caminhando com o
namorado para a casa da sogra e do sogro. O quarto dos pais do namorado era
emprestado ao então noivo e sua noiva, ali passavam sua primeira noite de amor,
ao menos oficialmente, e, na manhã seguinte estava sacralizado para todos da comunidade que
estavam casados...assim sem testemunhas na Igreja ou cartório...mas repletos de
testemunhos senão oculares certamente
auditivos !
Da
vida dele , o forasteiro se diz que ele e ela, a mulher da cidade, não conseguem ficar muito
tempo um longe do outro e muito menos conseguiriam os dois morarem juntos embaixo de um mesmo teto por mais de
três anoiteceres. O único que Sebastião nunca separou de si , foi o seu impecável terno branco e o óculos de espelho, que
espelha tanto os raios do sol quanto o brilho da lua.
Não cobrava nada pelo domingo de fartura a
Dona Nena, nem mesmo a bebida que servia com generosidade, bem diferente do dia
a dia a cobrar as dívidas das cadernetas, colocando tudo com preço mais caro, e
ainda mais distante da Dona Nena da Cooperativa, que falava que ali deveria ser
um por todos e todos por um, o lucro, a educação, o trabalho... tudo
socializado, tudo como um ato de amor
para com as pessoas.
O ponteiro, passou das sete e trinta , e o
Jordelino no ponto de ônibus, só espera chegar em casa e pegar a tarrafa. A
noite foi longa, a noite sempre é longa... vêm as lembranças, e essa noite foi
tão longe...os olhos marejaram enquanto a poça d’agua espirra em seus pés com a
parada do ônibus, que vai para a praia. Entra cansado, sonambulo no ônibus que
está quase vazio, passa pela catraca e senta bem na frente, encosta o rosto na
janela.. queria mesmo é ter passado a noite no molhado, trabalhando mar
adentro... como fizera seu pai e seu avô, que o mar, para quem respeita sempre
há boa aventurança.
Mirou-se
pela memória nas noites do mar em calmaria e também das noites de tempestade,
do medo de não voltar para terra firme, com o mar querendo engolir. Saltou do
ônibus era em parte bom trabalhar de
vigia na cidade, tinha aquele dinheiro certo todo fim de mês, mas não podia
ganhar mais , mas quando ia pro mar tarrafear
em horas de folga sim tinha um dinheirinho extra!.
Era mais forte o lado ruim, que a vida abraçado na praia com os amigos e com a
família era quando se sentia inteiro, como se ele fizesse parte do morro
repleto de pedras e árvores, como se ele fosse também um punhado de areia da
praia, como se ele pudesse ser água, água salgada, água do mar, aguenta com
firmeza a tarrafa que o lanço da tainha foi muito bom. Fooooraaaaaaaa
! Olha o camarrããããooo ! São os
sons que martelam nas noites de vigília,
não do mar que é uma parte de si, mas da
vigília do prédio da cidade, onde o espaço que ele têm é uma cadeira e as vezes uma mesa para fazer o lanche na
minúscula portaria, ou seria uma gaiola de cimento e ele um pássaro sem asas?
Dona Nena carregava uma sacola com roupas para doação, tinha muita criança na praia com os pais embarcados pro Rio Grande, isso ela
ainda tinha de bom coração, podia salgar nos preços
da sua
venda mas acabava sempre fazendo doações
que muito em boa hora chegavam nas casas dos pescadores.
Ao virar a ruazinha estreita, seu coração,
já nem tão jovem, acelerou, sentiu-se um jovenzinho a escutar: Se tuas mãos
teceram redes /Elas saberão/ Das minhas mãos/Carinhos que te entrelaçam/Nos laços
dos fios/Do amor que tenho à ti.
Jordelino sentiu mais uma vez um frio na
espinha que a Luiza com sua voz sempre tomava conta dele, como se ele passasse
a ser uma parte inteira dela, e ela uma
outra parte inteira dele. Não tinha palavras, mas ainda tinha lágrimas e o
sapato molhado e a dor nas costas e o tique taque tiquetaqueando da noite toda, ficou confuso,
parou e respirou fundo. Seguiu. Dona Nena ao seu lado escutou ele confessar,
que tinha dias que ele sentia a Luiza como uma mulher menina, que os anos a
deixavam ficar assim como ele a conheceu correndo com o balaio na praia para ir
pegar as tainhas cor de prata, no mar prateado de tainhas...e agora seus
cabelos estavam cor de prata.
Na semana seguinte dia de pagamento na cidade,
ia pagar a caderneta da venda da Dona
Nena e iria pro mar adentro, matar a saudades do mar, que o mar nunca sai da
gente. Mas está tudo muito difícil os homens
que trabalham pro seu Joel, desde aquele tempo do incêndio, cercaram o mar. O
mar é para ser livre, como passarinho no ar a voar...mar é para correr e
estourar suas ondas na praia e voltar a ser mar. Agora os barcos grandes passam
antes a capturar tudo e quando os barcos pequenos
adentram o mar o cardume mais
graúdo já foi captado.
O meu pai que está no
céu, ao lado da Nossa Senhora dos Navegantes
que me dê seu perdão por eu ter ido trabalhar na cidade por salário.
Meus filhos estudam, decerto vão conseguir um dia terem seu próprio barco, um
bom motor... escrito no lado com letra azul
bem grande o nome Gaivota e se um dia tiverem um segundo barco, que o
nome seja Luiza, mas essa palavra tem que ser escrita na cor vermelha. Sorriu.
Percebeu que acabara
mais uma noite de trabalho na cidade, não houve nenhum problema, e os minutos
custaram rodar; deu tempo de marear o
pensamento em tantas coisas...
O filho mais velho de Jordelino
e Luiza, com 12 anos de idade ganhou da professora da escola da praia um elogio,
por te escrito a melhor redação da sala de aula:
“ O mar e o meu pai são como
um Espelho , só que agora o espelho está quebrado. O mar está cercado, poluído.
O meu pai é o seu Jordelino, agora trabalha de vigia a noite na cidade e ele está com o coração despedaçado porque
não pode mais viver do mar. O mar que
ele é “ não pode mais ser”.
Marespelho Jordelino, quem sabe teu filho?!
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